Complexo de Bela

A gente sabe, lá no fundo a gente sabe, quando algo não é pra gente.
A gente conhece alguém e em pouco tempo, senão nos primeiros minutos, a gente sabe que aquele cara ou aquele relacionamento não é pra gente. A gente arruma um trabalho e em poucos dias já sabe que aquele lugar não é pra gente. A gente faz isso até com uma roupa, um sapato. Foi somente há uns meses atrás que fui me dar conta de que um tênis que tenho há seis anos e costumava amar me apertava. Ou o meu pé cresceu, o que seria um caso raro aos 36 anos de idade, ou ele sempre me apertou e eu nunca me deixei perceber, talvez porque seja uma tênis bem bonito aos olhos de quem vê. O quê é aterrorizante, porque a gente sempre sabe, mas insiste, por varios motivos.
Há menos de dois meses recebi a notícia de que o meu melhor amigo iria casar dentro de um mês. Estava dura na época. Fui atrás de um vestido no EBay. Encontrei um, uma graça e barato. O vestido nunca chegou e há uma semana do casório fui atrás de outro, também on-line. Achei um que não me agradava tanto quanto o primeiro, mas também era barato e chegaria em dois dias. O vestido chegou e junto com ele a minha frustração. O tecido era barato e horrível. O meu amigo merecia coisa melhor e eu também. Corri de novo para a internet, mas dessa vez para o Amazon, que geralmente é um pouco mais caro, mas desde que eu gostasse, o preço já não me importaria mais. Achei um, comprei e chegou na noite anterior ao casamento. A primeira coisa que fiz foi provar. Não estava perfeito, mas parecia luxuoso e tinha um bom caimento. Gostei. No dia seguinte só ouvi elogios. Fiquei pensando no quanto estresse poderia ter evitado se já tivesse comprado esse ao invés do segundo, que já não havia gostado muito pela foto. Mas, como em diversas vezes na vida, estava tentando fazer “servir” algo que não era pra mim.
Curiosamente o meu conto de fadas favorito sempre foi o da Bela e a Fera. Adorava a ideia de que por trás de uma máscara feia e assustadora se escondia uma pessoa amável e gentil. De fato, todos temos luz e sombra. A própria Bela perfeitinha é na verdade uma manipuladora com seu “jeitinho altruísta” de querer ajudar a Fera a ser mais educada. Só não me lembro em nenhum momento do bicho feio pedir a sua ajuda e nem de dizer que queria ser mudado.
Ah, mas essa mania de olhar o feio e enxergar o bonito, olhar o bruto e enxergar a sensibilidade, olhar o medo e enxergar a coragem eu semmmmpre tive. Sim, é uma qualidade. Mas insistir com algo ou alguma situação porque você vê o lado bom daquilo é muitas vezes só um argumento para não encarar que, não importa o lado o bom da coisa, o ruim te faz muito mal. É muitas vezes um medo, porque se te faz muito mal não há outra saída a não ser mudar aquilo e mudanças assustam. Mas é sobretudo um ato covarde contra si mesmo continuar aturando, se autoflagelando, usando inúmeras desculpas “boas” para sua inércia.
E como é difícil não é mesmo? Nós vamos além do nosso próprio limite fazendo isso, tentando. Assim como foi difícil tomar a decisão de bloquear o último cara com quem estava tentando um relacionamento. Assim também como foi difícil sair do último emprego no qual estava tentando me adaptar. Mas eu já sabia, sempre soube, que não era pra mim. Nem um, nem outro.
Na noite que conheci esse cara eu não pude dormir. Meu corpo estava inquieto, minha mente ansiosa. E eu conheço muito bem essa reação de pânico do meu corpo. Uma defesa, uma forma dele dizer “gata, tá errado, abre o olho, Bela!”. Quase o mesmo com o trabalho. Noites mal dormidas, vontade nenhuma de levantar pra ir pra labuta, vontade de chorar com tamanha grosseria e atitudes contraditórias das pessoas naquele lugar. E uma voz dentro de mim dizendo “tá tudo bem desistir, não é pra você”.
Mas levou um tempinho (até que não muito, apesar da intensidade do desgaste nas duas relações) para que eu mandasse os dois tomarem no cú, o que acabou por acontecer ao mesmo tempo. E tão assustador quanto possa parecer foi também um alívio! Quaisquer que fossem as belezas dessas duas situações já não eram nem de longe mais belas do que o todo empenho que eu estava empregando para fazê-las darem certo.
Lado bom, Bela? Lado bom é o meu e nenhuma empreitada deve ultrapassar os limites para mantê-lo são e salvo de qualquer coisa que o agrida.
Complexo de princesa? Não mais. Só a vontade de viver onde me encaixo, compartillhar minha felicidade com quem faz o mesmo e seguir tocando o foda-se para o que não é pra mim. E assim sim, sendo feliz para sempre ???

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