Amor em tempos inóspitos

Essa não é uma história de um date que não deu certo (ou deu). Não é sobre o último crush com o qual tudo começou bem, mas chegou a lugar nenhum. Não é só sobre aprender a viver e me descobrir através das minhas relações pessoais (mas também é). Não se trata de uma história de amor romântica entre dois indivíduos. Esta é uma história de amor entre mim e a minha alma. E, ao mesmo tempo, uma história de amor entre mim e o mundo. Melhor dizendo, entre nós e o mundo!Estamos vivendo o tempo de um isolamento social forçado nunca antes visto. Um tempo no qual o mundo deve parar para que não atinjamos um colápso sócioeconômico ainda mais trágico. Um tempo no qual a relidade de não podermos pensar somente em nós mesmos bateu à nossa porta dizendo \”fique em casa, assim você não correrá o risco de matar uma pessoa\”.Sim, é disso que se trata: matarmos uns aos outros, aos nos expormos a um vírus de fácil contaminação e que atinge fatalmente pessoas cuja saúde é mais frágil. Mas, como se não bastasse, também não é \”só isso\”.Quando tudo isso começou a minha racionalidade viu na ciência, nas estatísticas, a sua razão para não entrar em pânico. Há algumas semanas atrás, enquanto eu começava a ver americanos se desesperarem, correndo para comprar máscaras e alcool gel, eu dizia para mim mesma e outras pessoas que, contanto que lavássemos bem as mãos e com uma frequência maior, ficaria tudo bem. Coincidentemente (ou não), estava num processo de fortalecimento da minha fé, meditando, lendo e frequentando uma casa espírita aqui perto de casa. Eu não tinha como parar de trabalhar e até então continuava acreditando que não precisaríamos chegar a esse ponto. Eu ainda estava calma.Na semana passada as ruas já começaram a se esvaziar. As empresas já começaram a mandar alguns funcionários trabalhar em casa. Eventos foram sendo cancelados. Restaurantes e bares foram pouco a pouco vendo seus movimentos caírem. Tudo isso antes que qualquer ação oficial fosse tomada pelo governo. Percebi, assim como muita gente, que logo eu também perderia meu emprego. Mas estava tudo bem. De alguma forma eu sabia que ficaria bem.Há uma semana havia combinado de ir a um aniversário de um amigo num bar, mas muitas pessoas haviam cancelado. Ainda assim ele disse que se eu ainda estivesse a fim ele manteria a celebração, porque não sabia quando iria poder comemorar em meio a tudo isso. Fiquei com um pouco de pena dele, resolvi manter minha palavra e ir. O bar ainda estava cheio, como se nada estivesse acontecendo. Bebemos, conversamos e rimos durante longas horas. No dia seguinte, quando me levantei sabia que aquela havia sido a última saída por um bom tempo. Senti que havia me arriscado e arriscado a vida de outras pessoas. O vírus que a humanidade enfrenta não tem cara. Ele não escolhe idade, gênero, cor ou classe social.Domingo limpei o meu quarto e também fiz a minha faxina mental. Então, decidi sair para caminhar num parque aqui perto de casa, o dia estava lindo lá fora. Eu me sentia muito bem. Havia outras pessoas caminhando, era como se estivéssemos todos no primeiro dia de verão. Mas claramente não estávamos. No domingo à noite o governador do Estado de Massachuscets proibiu a abertura de lugares onde se reunem mais de 25 pessoas e declarou abertos restaurantes e bares somente para entrega e retirada de comida.Na segunda-feira fui trabalhar sabendo que aquele seria o meu último dia. Estava calma em relação a isso também. Acho que a fé que venho fortalecendo nos últimos meses me diz que não passarei nenhuma necessidade. Mas uma preocupação começou a me pegar seriamente, a de que enquanto eu estivesse na rua estaria correndo o risco de pegar e transmitir a doença. Eu, toda e qualquer pessoa nesse mundo somos um vetor ambulante. O problema não está só nos lugares onde se reunem uma quantidade maior de pessoas. O problema é que a partir do momento que eu pego um trem ou ônibus por onde uma pessoa infectada passou eu posso estar adquirindo o vírus. Se vou no mercado ou na farmácia, que são os lugares mais frequentados pelas pessoas ultimamente aqui, posso estar me contaminando. E nesse ínterim, nesse meio de caminho, cruzando com outras pessoas, estou ameaçando a vida delas e de quem quer que esteja ligado a elas. É um efeito dominó.Pensei nos meus pais. Ambos acima dos 65 anos. Ambos com problemas de saúde pré-existentes e no grupo de risco. Comecei a pensar em pais de amigos, tios, vizinhos, comecei a lembrar de todo senhor e senhorinha que, despretenciosamente, já me abriu um sorriso sincero nessa minha vida e de conselhos recebidos desses que viveram mais do que eu e que sempre têm algo a acrescentar.Aquela reflexão me tocou profundamente. Mais do que nunca pude ter a clareza da consequência das minhas ações na vida das outras pessoas e das delas na minha. Agradeci por não ter mais que ir trabalhar.Comecei a pedir encarecidamente, com argumentos e informações oficiais, para que amigos e familiares ficassem em casa. Avisei a eles que não os veria mais até que tudo isso passasse e todos estivessemos seguros. Comecei a ser a chata da casa no apartamento que divido com mais três roommates. Eles ainda parecem agir como se tudo isso estivesse longe deles. Resolvi me isolar no meu quarto e usar as áreas compartilhadas somente para o necessário mesmo. Infelizmente não consigo tocar a alma de outro ser humano como a minha foi tocada. Tenho tentado fazer a minha parte, mas a tomada de consciência é algo individual e cada um vai aprender (ou não) no seu tempo e à sua maneira.Entretanto, uma série de outras atitudes de muitas pessoas me alertou para a urgência da percepção da forma deturpada com a qual estamos vendo e vivendo nesse mundo. Pessoas se aglomerando, às pressas e desesperadas, nos mercados para comprar tudo que podem, como se nunca mais fossem encontrar algo para comer, deixando os demais sem o mínimo necessário para nem uma semana. Pessoas repassando vídeos de teor racista contra chineses, encobertos por falsos argumentos políticos e econômicos, disseminando mais ódio e em nada auxiliando na solução real de um problema mundial.Como é difícil perceber a nossa responsabilidade nisso tudo enquanto estamos preocupados em apontar o dedo para o outro. Como é triste ver de quanto amor esse mundo está carecendo.Elegemos líderes despreparados fundamentados pelo ódio. Compramos e consumimos muito mais do que necessitamos. Negamos 1 Real ao morador de rua, muitas vezes usando a falsa desculpa de que não queremos contribuir para o seu vício, mas gastamos centenas para nos envenenar em uma reunião com amigos regada a álcool. Não nos preocupamos nem com a nossa própria saúde, nos expondo ao risco iminente de uma doença que já matou milhares de pessoas em tão pouco tempo, que dirá nos preocuparmos com nossos próprios pais! Nos isolamos em casa e, alienados, mantemos os mesmos hábitos, comemos sem fome pela ansiedade e sofremos desesperadamente pelo medo, mas não paramos de verdade para nos perguntar o que está, de fato, nos faltando ou nos assustando. É triste. Muito triste perceber que estamos matando a nós mesmos e a qualquer vida no planeta há muito tempo.Espero, qualquer que seja o mundo que encontrarmos depois que esses tempos inóspitos passarem, que as pessoas tenham descoberto que o que nos falta é amor, na sua mais íntima, pura e simples forma. Então, talvez possamos recomeçar, dessa vez juntos. Acreditem. Ainda estou calma.

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