Mulher de verdade tem cicatrizes

Quando sai do Brasil, voltava a pesar os meus normais 47kg que carreguei pela vida antes de casar, tinha a saúde e a pele perfeitas, os meus cabelos rebeldes estavam aparentemente domados e a minha imagem era provavelmente a de uma pessoa forte e corajosa, por decidir largar um cargo público, um relacionamento recente, mas incrível, e a minha família, que arrisco dizer ser o grande amor da minha vida.
A grande maioria das pessoas à minha volta elogiava a minha bravura, a minha decisão de ter largado tudo e me arriscar em terras estrangeiras. Mas assim como quando me separei, não me sentia nem um pouco corajosa. Me sentia insegura, extremamente vunerável e ainda tinha um buraco enorme deixado pelo meu casamento.  Ainda estava perdida e muito. E, honestamente, nas duas situações, sair do casamento e do país, foi muito mais uma questão de sobrevivência, de necessidade de reencontrar a minha alma do que uma decisão pensada e consciente. Posso dizer que nas duas situações, se não fosse pelo apoio de outras cabeças mais conscientes da minha própria situação do que eu, eu ainda estaria no Brasil e tavez até casada.
Não, aquela falsa perfeição, aquela falsa idéia que as pessoas tinham de mim mesma não me servia, eu não me sentia corajosa. A verdade é que durante toda a minha vida, quando não tinha alguém pra tomar as decisões por mim e me dizer o que eu deveria fazer, eu as tomava de forma extremamente racional, sem observar os meus próprios sentimentos, sem olhar para mim mesma. Bom, eu? Quem era eu, se ainda adolescente resolvi que sentir doía demais e que definitivamente não queria lidar com aquilo?
Dali por diante, realmente tentei não lidar com mais nada que fugisse ao meu controle. Não me aventurava mais com os amigos na rua, era perda de tempo. Não me arriscava em paixonites com caras que não provassem mover mundos por mim, não era seguro. Não tinha paciência pra lidar com as mudanças orgânicas do meu corpo em transformação. Os cabelos viviam presos ou alisados. Comecei a tomar anticoncepcional com 15 anos. O descontrole da minha menstrução, as dores horrosas das cólicas e o risco de uma possível gravidez quando começasse a transar eram definitivamente impensáveis para mim. A minha vida era minha e eu sentiria só o que quisesse sentir. Escolheria me relacionar com pessoas que não me incomodassem nem um pouco. Se algo fosse muito diferente de mim, ou para mim, tratava logo de me livrar. E assim me livrei de pessoas, de situações, de sentimentos indesejados, de lidar com as minhas próprias emoções.
Funcionou por um tempo. Funcionou até que todas aquelas camadas que escondiam meus medos, minhas inseguranças e carências foram retiradas sem dó, como um esparadrapo que cobre uma ferida há muito tempo aberta é retirado em um só puxão. Foram retiradas pela dor da minha separação, mostrando um buraco enorme que havia ali.
Então, num piscar de olhos, depois de 20 anos, me vi aqui num frio do caralho, sem trabalho, sem ninguém que pudesse me dizer o que fazer, longe de qualquer referência, de qualquer situação ou lugar comum nos quais eu já sabia como agir, já estava habituada. Pensei em voltar, tive medo, mas fiquei…
Dois anos e meio depois eu contabilizo um pulso quebrado, um pé torcido, quatro cicatrizes de queimadura, alguns quilos a mais e muita celulite; marcas de espinha no rosto, nas costas e no peito; uma cicatriz de corte, algumas varizes, couro cabeludo com descamação, menstrução e hormonios um pouco descontrolados, mãos envelhecidas e rugas; coração partido e remendado por algumas vezes e a incerteza sobre quando sairei daqui e para onde irei.
Absolutamente essa seria uma descrição de filme de horror pra mim há alguns anos atrás. Não ter o controle do meu corpo, das minhas emoções e da minha vida era realmente algo aterrorizante pra mim. Mas o que eu não sabia, o que ninguém te conta quando você é criança, é que desde que você esteja vivendo, de verdade, você pode e vai se machucar. Vai acordar um dia e não gostar do seu corpo, mas depois de um tempo vai começar a tentar entendê-lo. O pé torcido, o pulso quebrado e as cicatrizes vão ser histórias pra contar e precauções para tomar. A pele imperfeita é mais um reflexo de como você enfrentou os invernos da sua vida e de como está cuidando de você, do que da falta do anticoncepcional. A dor do coração partido já não é mais tão intensa como da primeira vez que você a sentiu e, por mais que você possa vir a ter o seu coração partido de novo, ela já não vai mais ser tão dolorosa. As ansiedades sobre os projetos de vida, sobre como está envelhencendo e quando irá pousar naquele que será o seu recanto para o fim da vida vão invarialmente aparecer, mas desde que você tenha aprendido a lição de que viver, sentir, deixar doer e chorar fazem parte do grupo amar, rir e ser feliz, elas também vão passar.
Elas vão passar, porque agora você realmente sente que é forte, é corajosa e sente que vai dar tudo certo. Porque você chegou sozinha num lugar um tanto inóspito, com muito medo e tudo deu certo!
É verdade que tudo não vai estar sempre bem.
Aquele buraco deixado pela minha separação ainda tá lá, ainda sinto falta de ter aquele alguém especial (senão não seria uma Cinderela, não é mesmo?!). Tem dias que durmo e acordo com uma vontade enorme de chorar. São aqueles dias em que a saudade da família e as incertezas do futuro resolvem se jogar naquele buraco fazendo ele parecer um poço de tristeza. E tá tudo bem também. Porque agora sei que não preciso ser perfeita, não preciso controlar tudo.  Porque agora sei que aquele buraco é só um pequeno poço e que logo a saudade e as incertezas já não vão mais caber lá, porque ele tá ficando cada vez menor. Agora eu sei quem eu sou. Agora eu tenho cicatrizes e rugas pra me lembrarem, caso eu me esqueça…

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