31 de Julho foi o último dia no trabalho. Pedi demissão uns dias antes, acreditando que estava me preparando para a mudança ao Canadá. Teria somente um mês para me organizar e reiniciar os projetos, deixados de lado nos últimos meses pela falta de tempo.
Os primeiros dias de \”férias\” chegaram como um alívio. Estava realmente muito cansada e consciente de que já há um tempo o emprego no mercado não atendia meus anseios. Mas à medida que as horas livres iam passando a minha velha e querida amiga ansiedade me cutucava de forma paralisante.
Enquanto esperava uma resposta positiva da imigração canadense dizendo que eu estava good to go não conseguia me concentrar para escrever ou colocar em prática todas as ideias que tinha para fazer uma das coisas que mais gosto, falar sobre o ser mulher.
Naqueles poucos dias de espera, questionamentos inconscientes me bombardeavam quase que audivelmente: você quer mesmo ter essa vida de estudar e trabalhar de novo? Em que momento vai descansar ou se divertir? O que vai ser da sua qualidade de vida? E o mais importante, como daria continuidade no que realmente quer fazer da vida?
Podia ver a Cecilinha apontando o dedo pra mim, puta da vida porque entraria novamente numa rotina corrida, exaustiva e muito adulta, anulando-a, como fiz boa parte da vida.
Junto a isso estava o meu processo de repensar estruturas e referencias familiares. Antigas memórias e sentimentos de inadequação provenientes da infância estavam latentes, fazendo-me questionar as necessidades de pertencimento familiar e social.
Em meio a essa miscelânia de pensamentos e emoções, antes ignorados e agora desorganizados e desconectados, eu seguia numa dolorosa estagnação.
Depois de duas semanas de espera recebi finalmente a resposta da aplicação para o visto de estudante, que foi negativa. Outra enxurrada de emoções me ivandiu. Um misto divergente de frustração e alívio.
Fiquei terrivelmente frustrada pela impossibilidade momentânea de ver meu sobrinho nascer, de reaproximar-me da vida que um dia tive e do lugar onde minha alma renasceu. Mas ao mesmo tempo fui tomada por um alívio, como se a reposta para todas as minhas perguntas tivesse sido dada. Simples assim, como num golpe fatal, o Universo parecia me dizer \”retome seus projetos, seu presente, sua vida!\”.
E lá de dentro do meu esconderijo profundo, lugar onde enterrei todos os meus sonhos ainda menina, aquela voz aumentava o tom, me desafiando: você nasceu pra isso! Tenha coragem para ser quem você é, agora é a hora!
Sabia que ela estava certa. Que embora a vontade de morar fora ainda existisse, já passava da hora de encarar o quê me impedia de recomeçar e viver aqui, agora.
Imediatamente outras vozes começaram a ecoar na minha mente. Eram reais e vinham lá daquele momento no qual comecei a me sentir inadequada. Lesada, burra, sonsa, lerda… era do que me chamavam. Havia ainda uma outra voz, silenciosa, responsável por todas aquelas e dizia para eu não me expressar, não chamar a atenção, que me posicionar era errado, que isso me tornava chata.
As vozes que me limitavam não eram só de rostos familiares, eram da sociedade, que espera e cobra que nós nos encaixemos num padrão, para servir ao seu propósito, para que sejamos funcionais, controláveis.
\”E agora com o seu visto negado? O quê vai fazer? Quais os seus planos? Por quê você não vai pra Portugal? Você vai ter que arrumar outro emprego!\”
Acabara de ter o plano com o qual me apeguei destruído e já tinha que ter outro. Já tinha que saber o que fazer. Não podia só dizer que iria retomar meus projetos, me dar um tempo, ser minimamente feliz.
O fato é que as pessoas não acreditam na gente. Nesse globo capitalista e patriarcal sonhar é um luxo e, assim como todas as outras pessoas, fui doutrinada para não acreditar em mim mesma. E essa crença é uma das mais difíceis de enxergar e romper.
\”Você é responsável por tudo que te acontece, você faz suas escolhas\”, eles dizem. Isso não é verdade. Você só pode ser plenamente responsável pelas suas escolhas se tem consciência das construções ideológicas e estruturas sociais que te limitam.
O cerne da questão é que é muito mais difícil evoluir individualmente numa sociedade que restringe o seu pontencial, dizendo que não podemos ser assim ou assado, que devemos ser isso ou aquilo. Assim seguimos, na redoma da nossa cegueira, enfrentando egoísmos, extremismos, conservadorismos hipocritamente moralistas, nos afundando numa existência sem sentido, nos alimentando da infelicidade alheia para sermos felizes.
Para as mulheres a limitação começa na exigência do cumprimento do papel de santas, perfeitas, compreensivas e perdoadoras de todos os defeitos humanos. Devemos ser boazinhas, nos comportar de modo a agradar a todos. Não obstante, temos que ser inteligentes, mas cuidadoras. Usar palavras leves, melhor não discutir. Reprima suas emoções, silencie suas opiniões, emudeça!
Como mudar, evoluir, se minha incosciência está permeada de conceitos e crenças que não são minhas? Como acreditar em mim quando minhas inseguranças são necessárias à sobrevivência do machismo, da servidão, da submissão, do consumismo compulsivo na tentativa de preencher os vazios existenciais criados pela obrigação de ser perfeita?
Aqui há um paradigma no mínimo interessante no qual felicidade é sinônimo de perfeição. Para sermos perfeitas temos que seguir um padrão, mas enquanto indivíduos complexos e diferentes uns dos outros, qual a possibilidade de sermos felizes tentando ser igual a todo mundo, fazendo o que todo mundo faz?
Portanto, é imprescindível que desenvolvimento pessoal e social andem juntos, se queremos de fato evoluir enquanto humanidade, compreendendo e respeitando a necessidade da diversidade, garantindo que cada ser possa expressar-se e servi-la de forma única.
Infelizmente não se pode esperar que as pessoas entendam isso. A subjetividade da compreensão mora no confrontamento das crenças limitantes viventes em cada um, plantadas e estimuladas socialmente, passadas de geração para geração, quase como uma tradição familiar, desde que o mundo é mundo (ou seria desde que o mundo é deles?).
Cabe a mim continuar ouvindo todas as vozes do inconsciente, descobrindo quais delas são verdadeiramente minhas, questionando o quê não me parece certo, reconhecendo e acolhendo os meus demônios, denunciando injustiças sociais, ideias contrárias ao sentido de equidade e respeito à liberdade, provocando reflexões como uma mulher do contra (como dizem por aí), tornando minha existência significativa.
Uma grande amiga sempre me descreve como uma pessoa do mundo. Então, chegou a hora de tomar posse desse título, deixar para trás tudo que me fizeram acreditar e botar fé em mim. Porque, na real, o meu mundo nunca foi igual ao de todo mundo!