O quê deu errado com você?

Nesse último ano, confesso, me fiz essa pergunta algumas vezes. Tentei ignorá-la em todas elas, acreditando que o questionamento era fruto do momento de melancolia, da sensação de paralisia da vida, da falta de controle sobre quase tudo a minha volta e principalmente aqui dentro.

Até que caí, literalmente, de cara no chão (ler texto UM ADENDO SOBRE ABUSOS). Então, admiti que precisava olhar mais de perto para as minhas frustações, minhas dores e perdas. Não que as estivesse negando, mas como simples solução para elas acabava colocando os meus projetos de futuro, que terminantemente se resumiam a sair do Brasil de novo e ponto!

Mas alguns dias depois da queda tive uma interessante conversa com alguém que me fez encarar de fato essa pergunta. Era a sexta-feira que antecedia o fim de semana do dia das mães. Eu passava as compras no caixa um tanto apressada, já que o mercado estava bem movimentado em função da data, quando um homem com fisionomia familiar, apesar da máscara, se aproximou.

Fiz as perguntas de praxe, seguindo o protocolo de atendimento e comecei a passar sua compra. Percebi que ele precisava de ajuda para empacotar, ou era eu quem queria que ele empacotasse mais rápido para que a política de pronto atendimento do mercado fosse seguida e comecei a colocar os produtos nas sacolas.

Àquele ponto já desconfiava que ele poderia ser o vocalista de uma banda de pop rock brasileiro, mas sou eu né, tinha que perguntar. Enquanto empacotava aproveitei para dizer que seu rosto não me era estranho. Humildemente o homem respondeu que cantava numa banda, Capital Inicial, confirmando minhas suspeitas.

Claro que conhecia! A banda, inclusive, tocou em alguns festivais do cursinho que frequentei. Ele pareceu se surpreender com a informação e perguntou “você fez cursinho?\”. Depois do meu primeiro sim, uma sequência de perguntas e respostas foi iniciada de forma espontânea.

Sim, eu fiz cursinho. Estudei três anos de Sociologia na USP, em seguida dois de Ciência e Tecnologia na UFABC e mais três de Biologia, curso no qual me graduei. Fui professora de ciências concursada por quatro anos, quase enlouqueci e acabei exonerando o cargo para passar um tempo em Boston, Estados Unidos, lugar do qual voltei há um ano.

Quanto mais eu respondia, mais ele parecia absorto e intrigado. Em seus olhos estava estampada uma pergunta que ele não precisou fazer: o quê você está fazendo aí trabalhando de caixa no mercado?

Certamente ele não estava me julgando, muito pelo o contrário. Estava tentando entender, como muitas outras pessoas, talvez com alguma indignação relativa às oportunidades de trabalho e à situação do nosso país. Convenhamos, não devo ser a única pessoa por aí com qualificação para trabalhar com alguma outra coisa.

Respondi ao seu olhar indagativo e sua questão não verbalizada: \”Eu precisava pagar minhas contas. Tá tudo bem, é um trabalho digno como outro qualquer.\” Ele concordou, claro que é um trabalho digno! Mas me incentivou a voltar a estudar e me desejou boa sorte ao final.

Foi uma rápida, porém profunda conversa. Dinho Ouro Preto sentiu que algo estava muito errado ali e eu sabia que não poderia mais ignorar aquela pergunta.

Tá, todas as minhas ecolhas, minhas mudanças de rumo, os desvios no trajeto, os tais erros e acertos construíram a pessoa que sou hoje e daí?!

A verdade é que até aquele momento, desde que cheguei, a pessoa que eu era sentia um vazio enorme e não sabia mais o que fazer com toda aquela bagagem, aparentemente sem uso. Porque a realidade estimulava o meu lado rígido, crítico e duro naqueles momentos de questionamento.

Estudei uma porrada de coisas, vivi diversas outras e cá estou eu, num Brasil pandêmico de fanáticos extremistas, morando com a mãe novamente, me levantando de um outro relacionamento abusivo e outras verdades que deram um tapa na minha cara nos últimos tempos.

O quê fazer com tudo isso?

Apropriar-me do vazio e das angústias foi o primeiro passo. Olhar o quê podia ser mudado e trabalhar a aceitação para a resiliência (não é papo de monge budista, é necessidade, é sobrevivência, é real!). Afinal, já batalhei tanto até aqui por quê parar agora? E por quê apressar o passo?

É o cada vez mais conhecido por mim \”tudo está como deve estar\”. Algumas vezes mais fácil de entender na teoria do que na prática. Não, não é conformismo. Trata-se de enxergar o quê de fato não se pode mudar agora e apreciar o quê se tem. Acredite, tem muito mais coisas que você pode fazer hoje!

De lá para cá muitas coisas já mudaram, discreta, mas significativamente. Continuo trabalhando como caixa de mercado, porém curto ainda mais estar lá. Adoro conversar com as pessoas, me conectar com elas nos poucos minutos de contato. Tenho aproveitado isso de forma mais intensa, porque sei que um dia não estarei mais ali.

É o que acredito que tenho feito de melhor na vida, me importar com o ser humano, com a história por trás dos seus rostos, querer conhecê-los para além dos seus papéis sociais.

São também os nossos papéis que fazem com que nos percamos de nós mesmos e passemos a acreditar que algo deu errado. Não tem nada de errado comigo, nem com você!

Às vezes só precisamos de uma ajuda para entender o momento, força para retomar os projetos, paciência para esperar vir o que é nosso e gratidão por ter a oportunidade de crescer com as adversidades e poder ver a vida com o olhar da alma.

Continue e aproveite a caminhada, já deu certo!

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