As Três Marias

Há pouco mais de um ano eu caminhava no parque quando observei um menino sentado à calçada aos berros. Seu joelho estava ralado, provavelmente havia caído. Ele chorava e dizia ao pai que doía muito.

Lembro-me de ter pensado: é, meu amor, cair dói, crescer dói e como dói. Naquela época eu estava em um relacionamento, o qual me fazia muito mal, mas não compreendia o quão grave era. Só doía muito. Uma dor que não sabia explicar, não conseguia fazer parar, muito menos curar.

A essa altura da vida, geralmente já passamos por tantas quedas que as dores físicas passam a ser secundárias. Choramos muito menos pelo pé que quebrou ou o dedo que cortou do que pelas decepções, frustrações, agressões, abusos e tristezas.

A dor adolescente dos ossos crescendo, dos hormônios mudando, das primeiras rejeições, do coração partido vai dando lugar e abrindo um espaço profundo na alma para os traumas emocionais, os machucados do ego, os choros contidos, os orgulhos feridos, as memórias de tanta e de tantos tipos de violências sofridas.

É em cima desse buraco que vamos construindo barreiras, fundadas nas limitações que passamos a acreditar que temos, assim, se não tentarmos não vamos cair de novo.

Abandonamos nossa verdadeira essência, nossos mais lindos sonhos, para sobreviver numa guerra sem fim contra nossas próprias emoções, sentimentos e um mundo cruel que julga, padroniza, discrimina, manipula, segrega e diminue. Deixamos de ser quem somos, para sermos quem achamos que querem que somos, porque parece que sofremos menos dessa forma. Só parece.

Quando era pequena, talvez uns cinco ou seis anos, minha mãe notou que havia no lado direito do meu rosto três pintas separadamente alinhadas na diagonal. Então, disse que se pareciam com as três marias e que eu carregava comigo um conjunto peculiar de estrelas.

Além de toda a minha personalidade artística, extrovertida e ativista expressa claramente em todos os aspectos do meu ser tão pequenino, ainda tinha estrelas no rosto! Aquilo fez com me sentisse realmente especial. Sentia um amor enorme por mim.

Mas em terras hostis, nas quais ningu´em se ama de verdade, é difícil manter o seu amor-próprio. Os ataques à sua autoestima, liberdade e alegria são constantes, diários, violentos.

Acabei pagando pela falta de amor de muita gente ao meu redor. Uma ausência de amor que ouso dizer ser estrutural, social, uma falha enorme no DNA da espécie humana, sem previsão de evolução. Pois, não é o que experienciam quase todos que conhecemos?

Assim, acrescentamos à cova obscura do espírito uma bela camada de fantasias, para anestesiar toda a dor que estamos sufocando. Como se realmente o quê não víssemos não nos machucasse. Levantamos paredes coloridas, decoramos com quereres cegos, desejos irreais, lembranças falsas de quem precisa ver o lado bom das coisas, das pessoas, da vida.

Talvez porque quando começamos a enxergar o que é real não saibamos lidar ou tenhamos que mudar a forma como agimos a nossa vida inteira. Temos que desapegar, romper relações, quebrar padrões, olhar para dentro daquele buraco e ver os aspectos que fizeram com que deixássemos nos machucarem.

É uma batalha interna. Contestamos nosso ego e encaramos o de todos aqueles envolvidos na manutenção das fantasia que na verdade só nos impediam de crescer. Porque só há um jeito de amadurecer de forma independente, verdadeira e livre: vivendo, sentindo, contestando conceitos, exercendo nossos reais anseios da forma mais sincera conosco que pudermos.

No que restava da última lua cheia de 2021, no dia 25 de dezembro, me permiti permanecer um bom tempo sozinha, sentada em plena e total escuridão para apreciar somente a luz das estrelas. Eram tantas que levei um tempo para achar as três marias. Assim que as vi, toquei o meu rosto delicamente e sorri. Recordei finalmente, depois de tanto tempo, de muito apanhar, sentir e aprender, do quanto sou especial.

Ter a percepção da minha singularidade fez com que o sentimento de solidão recorrente ao longo da vida por esperar compreensão, apoio ou mesmo amor das pessoas se transformasse de uma vez por todas em liberdade.

Finalmente era livre! Independente do afeto ou julgamento alheio, sem a necessidade da aceitação, empatia ou aprovação do outro, sem precisar de permissão para ser feliz, quando e onde for.

Não se trata de frieza, muito menos arrogância. Aindo acho que a vida com pessoas é muito melhor, mas agora estar com elas é uma questão de escolha, não uma necessidade.

Na noite do dia 31 de Dezembro me despedi delas, da cidade em que me criei, do país onde meu corpo nasceu. À meia noite sobrevoava a Floresta Amazônica rumo às terras geladas da América do Norte. Sob a energia da mata que tanto amo agradeci por todas as lições aprendidas e pedi para que tudo que não precisasse mais fosse embora junto com o ano difícil que se foi.

Da janela do grande avião tentei ver as três marias, não consegui. Toquei meu rosto por cima da máscara e sorri para mim mesma. Jamais me sentiria sozinha ou perdida novamente. Tenho estrelas próprias para me lembrar da minha luz e uma fé no extraordinário invisível que me habita e que guiará meus passos esteja onde eu estiver. Que venha o novo ano e um desconhecido Universo tão desejado!

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