Eu sou minha deusa e meu sagrado e livre

“A mulher é o único transporte para se chegar a terra. Nós somos portais divinos, honre o feminino em você!”. UHUM, ÇEI…

Essa tem sido uma frase muito veiculada por algumas mulheres que simpatizam ou estudam a filosofia do sagrado feminino e que me incomoda profundamente por namorar uma religiosidade machista, tamanho o perigo do determinismo por trás da afirmação.

Pode ser que haja realmente uma crença religiosa envolvida na escolha de quem compartilha esses tipos de frase por aí. Talvez seja até uma convicção inconsciente, moldada por parâmetros patriarcais. Pois, prefiro acreditar que, assim como eu, essas mulheres buscam no sagrado feminino o autoconhecimento, o empoderamento através do estudo dos arquetipos da mulher e da conexão com as nossas raizes ancestrais e ciclos naturais.

Dessa forma, não têm se atentado às contradicões contidas nesse nada singelo trecho, que acompanha sempre a imagem de uma mulher grávida e que me leva a uma série de questionamentos.

De fato, a mulher é a única forma pela qual uma alma pode vir ao mundo (considerando que você acredita na existência de algo além do corpo físico). Mas a colocação utilizando palavras fortes como “honra” e “divino” é quase uma ameaça subliminar com caráter cristão àquelas que não seguirem seu dever de povoar a Terra.

Interessante pensar que: não seria esse um dos meios pelo qual o patriarcado reduz a mulher à mera condição de procriadora e assim diminui seu valor, poder e controla sua liberdade?

Mais interessante ainda, ou ultrajante, é pensar que por esse viés a filosofia do sagrado feminino que também busca unir as mulheres em sororidade por entender que estamos todas ligadas por uma mesma essência acabaria automaticamente por punir aquelas que não podem ou não desejam ter filhos, gerando distinção e segregação.

Nesse âmbito, ainda reflito: onde estaria o respeito pela natureza única das nossas individualidades, que promovem a criatividade e a riqueza da diversidade? Ou por natureza entende-se somente o corpo feminino, a biologia representada pelo útero? Não seria essa uma visão extremamente mundana do ser mulher e, portanto, desconectada com a energia proveniente de algo maior, sábio e verdadeiro? Onde se encaixaria a nossa sexualidade nessa visão? Seria ela meramente um fruto do metabolismo hormonal movido pela necessidade de gerar um novo fruto? O que seria da liberdade de ser, de escolher, da auto-aceitação, do amor-próprio que tanto buscamos?

Parece-me muito contraditório que o amor possa causar tanta limitação. É simplesmente controverso que uma mulher que ama sua natureza, seu eu, que busca olhar para seus mais profundos instintos e escutar sua intuição se sinta de tal forma superior às outras, julgadora do certo e do errado numa escolha que não cabe a ela, reprimindo a liberdade de escolher da outra.

Não há como enxergar-me em totalidade ou conectar-me comigo fazendo distinção entre mim e outras mulheres!

Os ciclos naturais, fora e dentro da mulher, no sagrado feminino não são mais do que a representação da força do universo dentro de nós, da existência da energia da vida de forma ampla. Sendo assim, sinto ser inviável buscar pela minha essência e liberdade enquanto classificar o feminino pela simples existência de um órgão reprodutivo e a obrigação implícita de usá-lo para esse fim!

Vale lembrar que a energia da mulher também está presente no homem, que possui a enorme barreira do machismo para expressá-la. Não obstante, temos as mulheres trans, extremamente sensíveis, que em sua consciência nada diferem das nascidas com um útero.

Adoradoras dos arquétipos podem tomar como exemplo o filho de Afrodite e Hermes, Hermafrodita, simbolizando a expressão das energias masculina e feminina num só ser.

A energia feminina e a capacidade de gerar devem ser olhadas de forma mais significativa e abrangente. Honrar o feminino é respeitar processos internos, escutar a si mesma e se sentir livre para criar e maternar o que quer que seja importante para você, uma ideia, um projeto, um sonho, não somente um filho!

Temos que ter um cuidado muito grande quanto ao movimento de empoderamento feminino. Se não questionarmos de forma profunda, individual e socialmente, conceitos limitadores e reducionistas, ao invés de despertarmos para o nosso poder e liberdade em uníssono continuaremos a caminhar para uma falsa evolução, de modo individualista, que destoa de uma real natureza complexa, conjugada pelos seus ímpares imprescindíveis e complementares.

Somos um portal divino sim, mas para o conhecimento, para a expansão de nossas consciências e busca da liberdade de ser, pacificadora e extintora de uma sociedade patriarcal repressora e violenta.

Meu corpo não pode me definir. Meu útero é usado por MIM, de maneira cada vez mais desperta, integrada com quem verdadeiramente sou e com o todo a minha volta.

Ouvir e respeitar meus mais íntimos e reais desejos só é possível quando faço o mesmo com as escolhas alheias. É assim que me apodero de mim, sem me esquecer do outro. É isso que me torna a minha própria divindade!

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